A
arte de reescrever
Por
chico Viana
“Refazer
os próprios textos pode ampliar as possibilidades da mensagem e
aguçar o senso crítico do redator”
Reescrever
é sobreviver
- Como
refazer os próprios textos, para além da correção gramatical,
pode nos ajudar a desenvolver as possibilidades da língua e a aguçar
nosso senso crítico.
Reescrever é um
componente fundamental do processo da escrita.
A razão
disso é que nenhum texto ganha forma da primeira vez em que as
palavras são colocadas no papel.
Reescreve-se
para se chegar ao que se quer dizer.
Com isso, desenvolve-se o senso crítico e se aprende mais sobre as
possibilidades da língua.
A reescrita é
imprescindível no aprendizado da redação.
Para Eliane Domaio Ruiz, “o
professor deve incorporar no ensino essa prática absolutamente
comum entre os escritores
(…), seja
simultaneamente ao ato da escrita, seja posteriormente a ele”
(de Como
corrigir redações na escola,
Editora Contexto, p. 24). Se ela não acontece, a correção
limita-se à exposição dos problemas, sem que o aluno seja
convocado a compreendê-los e os
resolver.
A refeitura do se escreve
faz com que o estudante se fixe não apenas do resultado obtido, mas
também nas transformações que deve efetuar no texto. Isso o ajuda
a perceber que a escrita é um processo gradual. Ele deve entender
que escrever
primeiras versões é condição ruim para que, posteriormente, se
chegue a um resultado satisfatório.
Quem não
reconhece as próprias falhas – suas e dos outros – não terá
como as evitar.
Os alunos com o tempo se
convencem disso e passam a temer menos os “erros”, pois sabem que
eles são um ponto de partida para se chegar ao acerto. Ao escrever
aprendem a desconfiar dos binômios certo/errado, bom/mau.
Convencem-se de que toda
redação pode ser aperfeiçoada;
o precário material que produzem nas primeiras versões é a
matéria-prima que resultará num produto final, ou seja, bons
textos.
Segundo Daniel Cassany,
“escrever
é como atirar pedras – a gente não sabe com certeza os feitos que
causará quando a pedra sair da sua mão”
(de Oficina
de textos,
Artmed, p. 91). A
reescritura ajuda a conhecer a trajetória da pedra, evitando o risco
de que ela caia na cabeça de quem a jogou.
Refazer: reescrever
não é revisar
– revisão,
a grosso modo, se concentra em problemas gramaticais.
Por meio dela corrigem-se
os tropeços na ortografia, na regência, na concordância, na
sintaxe dos modos e dos tempos verbais.
A reescrita
vai além:
implica
mudar ou cortar palavras, reordenar períodos, dar novas disposições
aos parágrafos, a fim de que o texto atinja os objetivos a que se
propõe.
A reescritura visa
aprimorar a competência discursiva do aluno. Não
escreve bem apenas quem não comete erros ortográficos e se sai bem
em concordância e regência.
Um texto
pode ser correto nesse aspecto e não cumprir a sua função.
O estudo da norma só tem sentido se conduz à produção de textos,
sobretudo escritos que ajudem o indivíduo a atuar na sociedade. Quem
não tem voz não tem vez.
Entendimento – a
reescritura em sala de aula dá
mais ênfase
à comunicação
do que ao estilo (no sentido literário). Não se está, afinal de
contas, lidando com escritores, e sim com uma clientela que deseja
aperfeiçoar sua capacidade redacional. O
que se persegue é a clareza, a transparência de sentido.
O aluno
deve estar consciente de que escreve, sobretudo, para se fazer
entender.
O caminho para chegar a isso é combater
os problemas que dificultam o ato de ler.
Stephen Kock afirma que “o
coração da legibilidade é sua relação com o leitor. A clareza é
um instrumento essencial dessa relação”
(Oficina
de escritores,
Martins Fontes, p. 227).
entre os fatores que
comprometem a leitura estão as falhas coesivas, a quebra do
paralelismo, o excesso de palavras, a redundância de ideias, as
enumerações extensas e as imprecisões vocabulares.
Coesão – as
falhas de coesão sãos as mais graves, pois afetam a coerência e
por vezes obscurecem totalmente o sentido. Mesmo quando não chegam a
esse extremo, desconcertam o leitor por promoverem quebra da unidade
estrutural do texto. É o que ocorre na passagem abaixo retirada,
como todas as passagens deste artigo, de redações produzidas em
sala da aula):
“Diante do comodismo
e da certeza de impunidade, em vez de (nós)
seguirmos
as normas, a cultura do famoso jeitinho brasileiro vem se difundindo
e tornou-se algo louvável”
Na reescritura desse
texto procurou-se mostrar ao estudante que a manutenção do sujeito
(nós),
no último período, daria unidade ao conjunto e facilitaria o
trabalho de entendimento do leito:
“Diante do comodismo
e da certeza da impunidade, em vez de (nós)
seguirmos
as normas, (nós)
difundimos
a cultura do famoso jeitinho brasileiro e o tornamos louvável”
Problema
semelhante ocorre neste trecho:
“Além da falta de
coerência desse
projeto
na questão do Estado interferir na forma de educar, ele
não esclarece quais serão os critérios usados para associar a
punição ao nível de gravidade das palavras”
Observe que o termo
“projeto”
(sobre a interferência do Estado na educação dos filhos) não se
relaciona com o pronome ele
- que
gera uma ambiguidade de sentidos, ou seja, a quem se refere esse
pronome? A Estado ou ao projeto? Isso determina uma quebra na
estrutura. Recuperamos a unidade estrutural apresentando “o
projeto”
como sujeito da primeira oração:
“Além do
projeto
ser incoerente, por permitir que o Estado interfira na educação dos
filhos, ele
esclarece quais os critérios para associar a punição ao nível de
gravidade das palavras.”
As rupturas no
paralelismo resultam da falta de simetria formal entre os elementos
coordenados. A ausência de correlação sintática enfeia o texto
mesmo que haja comprometimento do sentido, como se vê nesta
passagem:
“Talvez o
preconceito se explique por se achar que pobre é indefeso, explorado
e, conforme diz Lya Luft, que
estão todos contra
ele.”
Ao coordenar os
predicativos, o aluno usou dois adjetivos (indefeso
– explorado)
e uma oração. Alertado sobre o problema, tratou de encontrar um
termo morfologicamente correlacionado ao conjunto:
“Talvez o
preconceito se explique por se achar que pobre é indefeso, explorado
e, conforme diz Lya Luft, hostilizado
por todos.”
Quando há palavras em
excesso, os vilões são os adjetivos, advérbios e preciosismos:
“Os pais
escandinavos não demonstram fisicamente
amor pelos seus filhos. Eles defendem que é muito
mais importante valorizá-los. No entanto nesses países existe alta
taxa de suicídios apesar
de
tanta
valorização.
Certamente os pais não percebem que dentro dos filhos há
um grande abismo
chamado solidão e que nada substitui um abraço afetivo em horas de
dor
e tristeza.”
Essencial – os
termos em itálico, de fato, nada acrescentaram ao pensamento do
aluno. Retirá-los dá maior peso aos substantivos e verbos,
destacando o essencial da informação:
“Os pais
escandinavos não demonstram amor pelos seus filhos. defendem que é
mais importante valorizá-los. No entanto, nos países escandinavos
ocorre uma alta taxa de suicídios. Certamente os pais não percebem
que os filhos se sentem solitários e que nada substitui um abraço
em horas de tristeza.”
O fator que desencoraja a
leitura é a repetição de ideias. Ela faz o discurso circular em
torno de um mesmo ponto e compromete a progressão, conforme se vê
nesta passagem de uma redação sobre a força de vontade:
“Tudo que se
quer consegue-se,
basta apenas focalizar os pensamentos naquilo que mais se
deseja, pois quando a atenção está voltada para uma coisa só, é
quase impossível não consegui-la.”
As longas enumerações
também indispõem à leitura. Ler é antecipar os conteúdos
desconhecidos a partir dos conhecidos; a diversidade dos termos que
aparecem numa enumeração torna difícil essa tarefa:
“A expansão
desordenada da agricultura, o desmatamento, a poluição do solo e
das águas, o tráfico de animais silvestres, a exploração abusiva
dos recursos naturais estão extinguindo espécies numa velocidade
muito maior do que a natureza tem de fazer a reposição.”
Uma forma de melhorar a
legibilidade desse trecho é antepor aos termos enumerados uma
expressão genérica e ligá-la imediatamente ao predicado:
“Vários fatores
concorrem hoje para extinguir as espécies num velocidade maior do
que a natureza tem para repor. Entre eles estão o desmatamento, a
poluição do solo e das águas, o tráfico de animais silvestres e a
exploração abusiva dos recursos naturais.”
Problemas semelhantes a
esse é o das longas intercalações. Na passagem abaixo, a presença
de três orações entre o sujeito e o predicado faz esquecer de quem
(ou do quê) se fala no início do período:
“O capitalismo
moderno,
que se caracteriza pela enorme concentração de renda e estimula a
globalização, pois é preciso estender o consumo a todo o mundo,
senão o capital não se multiplica, cria
nas cidades grandes regiões com muitos marginalizados.”
Ligação – na
reescrita, contornou-se o problema ligando o sujeito ao predicado e
transformando o período em dois:
“O capitalismo
moderno cria nas cidades grandes regiões com muitos marginalizados.
Ele se caracteriza pela enorme concentração de renda e estimula a
globalização, pois é preciso estender o consumo a todo o mundo,
senão o capital não se multiplica.”
Também devem ser
refeitas as frases longas, ou “centopeicas”. Nesse sentido de
frase não há propriamente falha de coesão; as ideias estão bem
articuladas, mas a falta de pontos e vírgulas dificulta a captação
da mensagem:
“Nossos políticos
dedicam-se a criar escolas e mais escolas, abrir concursos para
preencher dezenas de vagas com professores vindos de cursos
universitários às vezes ruins, às vezes inadequados à matéria
que vão lecionar e dão-se por satisfeitos, pois, para eles, ensino
de qualidade não é algo a ser pensado e elaborado, nem ao menos
importado pronto do exterior, mas é simplesmente um conceito vazio a
ser usado em véspera de eleição.”
A divisão do parágrafo
em no mínimo três períodos daria um melhor ritmo ao texto e
facilitaria ao leitor relaciona sua partes:
“Nossos políticos
dedicam-se a criar escolas e mais escolas.
/ Abrem concursos para preencher dezenas de vagas com professores
vindos de cursos universitários às vezes ruins, às vezes
inadequados à matéria que vão lecionar.
/ Apesar disso, dão-se por satisfeitos, pois, para eles, ensino de
qualidade não é algo a ser pensado e elaborado, nem ao menos
importado pronto do exterior; é um conceito vazio a ser usado em
véspera de eleição.”
No plano semântico, a
refeitura procura sobretudo resolver os problemas de adequação
vocabular, já que a escolha da palavra exata é fundamental para a
compreensão do que se quer dizer. Numa passagem como: “Vivemos
numa época de substituição de valores como ética e respeito por
outros menos substanciosos...”
É provável que o aluno não tenha a exata percepção do que seja
“substanciosos”.
Esse adjetivo não se aplica a “valor”.
Mais adequado seria empregar “nobres”,
“elevados”
ou outro termo semelhante.
Adequação – a
reescrita em sala de aula é primeiro “autotextual”. Com a ajuda
do professor e dos colegas, o aluno reescreve os próprios textos.
Numa etapa posterior, ele trabalha só textos dos outros. Esse é o
momento de transformar gêneros, estilos, registros de linguagem,
visando fazer uma ponte entre o que se escreve na escola e fora dela.
O objetivo é mostrar ao estudante que produzir textos é uma forma
de interagir socialmente. Ele não reescreve apenas para contornar
problemas de linguagem e expressão, e sim, conforme observa Sírio
Possenti, “para
tornar o texto mais adequado a uma certa finalidade, a um certo tipo
de leitor, a um certo tipo de gênero”.
A
paráfrase___________________
Transformar um soneto de
Gregório de Matos em prosa ajuda a entender as características do
poema.
Entre as possíveis
atividades de retextualização está a paráfrase, que consiste me
“traduzir na própria língua” determinado texto.
Paráfrase de poemas são
úteis para confrontar as diferenças entre prosa e poema; servem
também para ampliar o vocabulário.
Apresentamos a seguir a
versão a que, num trabalho em sala de aula, se reduziu este
conhecido soneto de Gregório de Matos:
(Pondo
os olhos primeiramente na sua cidade, conhece que os mercadores são
o primeiro móvel da ruína, em que arde pelas mercadorias inúteis e
enganosas)
Triste, Bahia! Oh quão
semelhante
Estás, eu estou do
nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu
a mi empenhado,
Rica te vejo eu já,
tu a mi abundante.
A ti tocou-te a
máquina mercante,
Que em tua larga barra
tem entrado,
A mim foi-me trocando,
e tem trocado
Tanto negócio, e
tanto negociante.
Deste em dar tanto
açúcar excelente
Pelas drogas inúteis,
que abelhuda
Simples aceitas do
sagaz Brichote.
Oh se quisera Deus,
que de repente
Um dia amanheceras tão
sisuda
Que fora de algodão o
teu capote!
Vocabulário:
Brichote – estrangeiro, sentido pejorativo
Paráfrase:
“Triste
Bahia, quão diferente estamos de nosso estado antigo. Hoje te vejo
pobre e tu me vês empenhado, mas já te vi rica e tu me viste
abundante. O que te empobreceu foram os navios comerciais que têm
entrado em tua barra; o que me fez pobre foram os negócio e os
negociantes. Trocaste muito açúcar de alta qualidade pelas drogas
inúteis que, presunçosa (metida), aceitas do esperto estrangeiro.
Quisera Deus que um dia amanhecesses tao sensata, que o teu capote
fosse de algodão.”
Gêneros
trabalhados________________
Ao reescrever um poema de
Manuel Bandeira em forma de notícia, ressaltam-se as fronteiras
entre os gêneros textuais.
A transformação de
poema em prosa pode-se associar o trabalho com os gêneros. Seguindo
essa linha, uma outra possibilidade é transformar um poema em
notícia, como se fez com o o conhecido “Poema
tirado de uma notícia de jornal”,
de Manuel Bandeira:
“João Gostoso era
carregador de feira-livre e morava no morro da Babilônia num
barracão sem número.
Uma noite ele chegou
no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na
Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.”
Ao determinar que os
alunos retextualizassem o poema, chamou-se a atenção para as
diferenças de estrutura, ritmo, pontuação que distinguem a prosa
do poema. Eis uma das versões:
“Ontem um indivíduo
conhecido como João gostoso, depois de beber, cantar e dançar no
Bar Vinte de Novembro, atirou-se na Lagoa Rodrigo de Freitas e
morreu. Ele era carregador de feira-livre e morava no Morro da
Babilônia, num barracão sem número.”
O trabalho de
reescrever_________
Mudar o tom de um pedido
de emprego para um registro mais formal requer alguns cuidados.
Uma forma de trabalhar os
níveis de linguagem é reformular textos escritos num registro
inapropriado. Que efeito teria uma carta com pedido de emprego
escrita assim?
“Alô gente boa,
Faz dois anos que
descolei o canudo, mas até agora não choveu na minha horta. Já
trabalhei em tudo que foi lugar, e o pessoal só contrata gente
calejada; o diabo é que para isso é preciso uma primeira vez, não?
Como vi no jornal que
sua empresa está abrindo vagas, resolvi lhe pedir uma chance.
Umazinha só. Garanto que não vai se arrepender, pois disposição é
comigo mesmo. Não sou de pegar e largar, quando engreno numa coisa
vou a té o fim.
Sem mais lorotas, pra
não tomar seu precioso tempo, subscrevo estas mal traçadas.
C. F. S.”
Adaptando a um registro
menos informal, o texto tem bem mais chances de atingir sua
finalidade:
“Senhor gerente:
Faz dois anos que me
formei, e até hoje não consegui emprego. Procurei em vários
lugares, mas as pessoas diziam que só contratavam funcionários
experientes. No entanto, para tudo é preciso uma primeira vez.
Soube que sua empresa
está oferecendo vagas, por isso resolvi lhe pedir uma oportunidade.
Sou disposto, persistente, e não deixo tarefas pelo meio.
Sem mais, subscreve,
atenciosamente,
C. F. S.”
Referências_________________
Revista
Língua Portuguesa – Ano 7, Nº 76 – p. 44-49, Fev. 2012