Dom Helder Câmara: “A síntese da
melhor tradição espiritual da América Latina”. Entrevista
especial com Ivanir Rampon
“Sua
fonte foi a religiosidade tradicional católica, principalmente, do
povo cearense e nordestino. Ele apreciava as devoções populares à
Eucaristia, à Maria, aos Santos, aos Anjos e ao Papa. O núcleo da
sua espiritualidade era o amor a Deus e às criaturas”, menciona o
teólogo.
“Dom
Helder foi um místico original”. É assim
que padre Ivanir Rampon, autor do livro O
caminho espiritual de Dom Helder
Câmara (São Paulo: Paulinas, 2013),
apresenta o arcebispo emérito de Olinda e Recife, que faleceu em 27
de agosto de 1999. Para Rampon, a mística e a
espiritualidade são as “facetas mais importantes” de Dom
Helder, que, “antes de ser padre ou bispo, antes de
ser o guia da Igreja no Brasil, antes de ser o defensor dos pobres,
antes de ser o promotor da justiça e dos direitos humanos contra
toda a opressão, foi um místico”. Sem essa característica,
acentua, “provavelmente, ele não teria sido o bispo das favelas
do Rio de Janeiro, o arcebispo dos pobres no Nordeste, o advogado do
Terceiro Mundo, o apóstolo da não violência ativa, a esperança de
uma sociedade renovada segundo o ideal cristão, o poeta-místico e
profeta de uma fé jovem e forte”.
Na
entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por
e-mail, Rampon conta a trajetória de Dom
Helder Camara na Igreja brasileira e sua
participação em momentos decisivos, como na Segunda
Conferência Geral do Episcopado Latino-americano de Medellín
e no Concílio
Vaticano II. “O Concílio, na concepção helderiana, não
foi apenas um evento, mas um espírito, um programa de vida, uma
concepção eclesial. O Vaticano II lhe deu fundamentos para propagar
um cristianismo aberto, libertador, promotor da justiça e da paz.
Disse-lhe muitíssimo por suas palavras e silêncios, por seus textos
e por seus gestos simbólicos”, relata.
Ivanir
Rampon é graduado em Teologia pelo Itepa
Faculdades, em Filosofia pela Universidade de Passo
Fundo – UPF, mestre em Teologia pela Faculdade
Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE e doutor em
Teologia pela Pontifícia Universitas Gregoriana,
Roma. Atualmente leciona na Itepa Faculdades, em
Passo Fundo - RS.
Confira a entrevista
IHU On-Line - Quais foram os
aspectos mais marcantes da trajetória de D. Helder Camara na Igreja
brasileira?
Ivanir Rampon -
Entre outros aspectos, Dom Helder marcou e marca a
história da Igreja no Brasil por seus feitos, tais como: a renovação
da Ação Católica e a viabilização do
Ano Santo de 1950 no Brasil; por ser o fundador (e por anos
brilhantes, secretário) da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB e pela sua decisiva
participação na fundação do Conselho
Episcopal Latino-Americano - CELAM; pela organização
do XXXVI Congresso Eucarístico Internacional no Rio de
Janeiro (1955) e por iniciar a Cruzada de São
Sebastião e o Banco da Providência; por
viabilizar o Movimento de Educação de Base, a
Operação Esperança, o Encontro de Irmãos
e a Comissão Justiça e Paz; por difundir o espírito do
Concílio Vaticano II; pela ativa participação em
Medellín, ajudando a Igreja de Cristo a ter a
coragem profética de assumir a opção pelos pobres; por ter
aprofundando Medellín em Puebla quando
forças contrárias queriam dar marcha a ré; por ter ajudado a
Igreja a abraçar a defesa dos direitos humanos e a causa da
redemocratização do país. Estes são alguns feitos. Existem tantos
outros.
Mas, além dos feitos, Dom
Helder marcou a Igreja no Brasil por seu jeito. De fato, ele
é considerado expoente da profecia, figura exemplar de Bispo-Pastor
e símbolo mundial da não violência ativa, juntamente com Gandhi
e Martin
Luther King. Em tudo isso, conseguiu aglomerar pessoas a
fim de lutar por causas libertárias importantes. Por exemplo: ele
não foi apenas um grande profeta, mas provocou um “arrastão
profético” no Brasil e na América Latina. Certamente, o elemento
mais conhecido de Dom Helder é a profecia. Mas, na opinião de
muitos que o conheceram, esta não é a sua faceta mais importante: é
a sua mística, a sua espiritualidade.
No dizer de
José Comblin, antes de ser padre ou bispo, antes de ser
o guia da Igreja no Brasil, antes de ser o defensor dos pobres, antes
de ser o promotor da justiça e dos direitos humanos contra toda a
opressão, ele foi um místico, e tudo isso foram apenas
circunstâncias em que teve de viver a sua mística. José
Beozzo, por sua vez, afirma que Dom Helder consegue ser
uma síntese da melhor tradição espiritual da América Latina, pois
nele encontramos o profetismo e a veia literária de Pedro
Casaldáliga, a intrepidez e o senso político de Ivo
Lorscheiter, a atenção aos pobres e a capacidade de
conciliação de Dom Luciano Mendes de Almeida, a
bondade e a intuição teológica de Aloísio
Lorscheider, a coragem e a defesa dos direitos dos
pequenos de Evaristo Arns. Penso que, neste sentido,
o papa Paulo VI foi muito feliz em apresentar Dom Helder como um
místico e um poeta, um grande homem para o Brasil e para a Igreja,
alguém com um coração incapaz de odiar: que só sabe amar, que
recebeu de Deus a missão de pregar a justiça e o amor como caminho
para a paz.
IHU On-Line - Como o senhor
descreve o caminho espiritual de D. Helder Camara? Qual a
singularidade da espiritualidade helderiana?
Ivanir Rampon -
Sobre Dom Helder, já foram escritos centenas de
artigos, livros e estudos mostrando o contributo do Bispinho para a
educação, a política, a democracia, a profecia, a Igreja, o
Vaticano II. Quanto à espiritualidade helderiana, também
há ótimos textos. A originalidade do livro O caminho
espiritual de Dom Helder Camara está justamente no fato de
apresentar a caminhada espiritual de Helder Camara. Em outras
palavras, não se trata, apenas, de descrever características de sua
espiritualidade a partir de um momento fixo de sua vida, mas de
caminhar com ele, percebendo quais foram as constantes, as novidades,
as mudanças e os progressos (ou as “conversões”, as
“humilhações”, os “novos acentos”, “as gentilezas do
Pai”) no seu modo de viver sob a orientação do Espírito Santo.
Por isso, foi dada grande importância aos próprios textos e relatos
do Arcebispo. Nos primeiros cinco capítulos, indicamos como Dom
Helder aplicou a sua força místico-espiritual no apostolado e no
ministério sacerdotal, servindo a Igreja, a sociedade e os pobres.
Nos outros quatro, analisamos como ele cultivou esta “força”,
que lhe dava sustento no “caminho do Senhor”. Ao caminhar com Dom
Helder, percebe-se, em uma perspectiva diferente e mais
profunda, como ele viveu unido “à Vida divina da Santíssima
Trindade” e em “união com Cristo” no decorrer do processo
histórico-espiritual que envolveu sua vida e ministério.
A análise de escritos de Dom
Helder, especialmente as circulares, nos mostra que a
Vigília (oração) e a Santa Missa (Eucaristia)
foram fundamentais para que Dom Helder se tornasse
“a síntese da melhor tradição espiritual da América Latina”:
sem elas, provavelmente, ele não teria sido o bispo das favelas do
Rio de Janeiro, o arcebispo dos pobres no Nordeste, o advogado do
Terceiro Mundo, o apóstolo da não violência ativa, a esperança de
uma sociedade renovada segundo o ideal cristão, o poeta-místico e
profeta de uma fé jovem e forte. Sem a Vigília e a Santa Missa, não
seria possuidor desta espiritualidade madura, não seria “o DOM”:
o Dom da paz, do amor, da justiça, da libertação... o Dom de Deus!
O livro visualiza que Dom Helder foi
um místico original, ou seja, alguém que fez caminhada própria na
relação/união com Deus, não sendo discípulo de nenhum místico
específico, mas tendo afinidades com vários místicos. Sua fonte
foi a religiosidade tradicional católica, principalmente, do povo
cearense e nordestino. Ele apreciava as devoções populares à
Eucaristia, à Maria, aos Santos, aos Anjos e ao Papa. O núcleo da
sua espiritualidade era o amor a Deus e às criaturas. O amor ao Amor
estava relacionado com a beleza, a pureza, a gratidão, a justiça, o
bem, a paz, o perdão. Acreditava na força do amor, sendo
profundamente não violento e doando-se totalmente pela paz.
Procurava evitar qualquer conflito e entregava-se pela justiça na
face da Terra. Não guardava ódio em seu coração. Aceitava as
“humilhações” como uma “ajuda” de Deus para aperfeiçoar
seu caminho de vida e santidade. Sentia que fora Deus que o fizera
mais “testemunho do presente e do futuro, do que do passado”.
IHU On-Line - Quais foram os
ensinamentos espirituais recebidos por D. Helder e como eles marcaram
sua personalidade e espiritualidade?
Ivanir Rampon - Os
primeiros passos (infância e juventude) do caminho espiritual de Dom
Helder marcaram profundamente toda a sua caminhada. Entre as
principais influências dessa fase, podemos destacar:
1) de sua mãe,
aprendeu a importância do diálogo, da humildade, do pacifismo e da
compreensão diante das fragilidades humanas;
2) com afeto e
atenção, ouviu seu pai dizer que “sacerdócio” e “egoísmo”
não combinam;
3) na Conferência
Vicentina, compreendeu que a caridade é virtude central da
espiritualidade cristã;
4) durante o
período de Seminário, iniciou suas Meditações que, após a
ordenação sacerdotal, tornaram-se constantes e, atualmente, as
Meditações do Pe. José são uma fonte
incomparável para compreender a mística helderiana;
5) do Pe.
Cícero recebeu uma lição que viverá exemplarmente: no
coração de um cristão e, sobretudo, de um padre, não deve existir
uma gota de ódio;
6) para que pudesse
progredir no caminho espiritual, o Senhor lhe enviou a primeira das
grandes humilhações: descobriu que aquilo que parecia defesa da fé,
era na verdade orgulho intelectual. Como discípulo, deveria sentar
aos pés de Jesus e seguir a seta da humildade, pois, sem essa
virtude, não se dá um passo nas vias do Senhor;
7) pouco antes da
Ordenação, decidiu que não se deixaria engolir pela vida. Para
tanto, dedicaria um tempo diário à oração. Desse modo, nasceram
as Vigílias, que lhe possibilitarão o ingresso na experiência
mística. Esta primeira fase de sua caminhada espiritual foi
importante para os outros grandes passos que lhe proporcionarão um
amplo desenvolvimento espiritual.
IHU On-Line - Como foi o
período em que D. Helder viveu no Ceará? Que aspectos marcam
sua trajetória entre 1936 e 1964?
Ivanir Rampon -
Helder viveu a primeira fase de sua vida em
Fortaleza (1909-1935). Ali se sentiu chamado ao sacerdócio e se fez
vicentino. No Seminário, destacou-se pela inteligência, retidão e
respeito. Ordenado sacerdote, dedicou-se ao apostolado educacional e
político. Ingressou no integralismo, liderou a Liga
Eleitoral Católica - LEC e tornou-se
“Secretário de Educação” do Ceará. No suceder dos fatos,
aprendendo com acertos e fragilidades, deu seus primeiros passos na
via da espiritualidade.
Já a segunda fase de sua vida
(1936-1964) viveu no Rio de Janeiro. Foi quando se
aproximou das teorias do Humanismo Integral e do Desenvolvimento
Integral; deixou-se influenciar pelo testemunho de São
Francisco de Assis e pela espiritualidade da Ação
Católica; dinamizou o Ano Santo de 1950;
foi ordenado bispo enquanto realizava a fundação da CNBB, sendo o
Secretário Geral da entidade por 12 anos; organizou o XXXVI
Congresso Eucarístico Internacional, a Cruzada de São
Sebastião e o Banco da Providência; foi um dos fundadores do CELAM.
Após o Congresso Eucarístico, desafiado pelo Cardeal
Gerlier, iniciou um processo de conversão e de consagração
aos pobres. Apoiou o Movimento de Educação de Base - MEB
e participou do Vaticano II, convocado pelo Papa
João XXIII.
IHU On-Line - Como foi o
trabalho desenvolvido por D. Helder nas favelas cariocas? Em
que medida essa experiência e sua atividade pastoral contribuíram
para seu “progresso espiritual”?
Ivanir Rampon -
Após o XXXVI Congresso Eucarístico, sensibilizado
pelo Cardeal Gerlier, Dom Helder iniciou aquilo que
chamou de “um momento da virada”, ou seja, iniciou a sua
consagração especial aos pobres. A partir daquele dia, as visitas
às favelas começaram a ser frequentes e se converteram em sua
preferência pastoral. Quando bispos e cardeais o visitavam, ele os
recebia com grande cordialidade e os levava para um passeio. O
principal lugar a conhecer não era mais a Catedral de São
Sebastião ou o Corcovado – onde se
contempla uma das paisagens mais belas do mundo –, mas as favelas
do Pinto, Jacarezinho, Cantagalo, Cabritos, Saudade, Babilônia,
Prazeres, Céu, Cachorrinha.
No projeto da Cruzada de São
Sebastião, as favelas seriam substituídas por prédios a
serem construídos no mesmo local, ou seja, no Leblon, lugar que
exibia o extremo da desigualdade social. Para Dom Helder,
seria a ocasião de superar a chamada “luta de classes”,
aproximando pobres e ricos, morando os trabalhadores vizinhos aos
patrões, não obstante as reclamações da burguesia. O Dom queria
integrar as favelas na estrutura socioeconômica da cidade. A Cruzada
de São Sebastião foi o primeiro projeto de moradia popular de
grande extensão no Brasil. Em 1959, por exemplo, estava construindo
672 lojas, 216 armazéns, 216 escritórios, 192 lojas (para bancos,
repartições públicas, restaurantes, etc), 140 salas (para médicos,
dentistas, veterinários, agrônomos, advogados, despachantes, etc).
Além disso, estava projetando o Palácio da Bolsa de Gêneros
Alimentícios (8 a 10 andares), serviço de assistência aos
veículos, frigorífico e outros blocos residenciais. Já nessa
época, Dom Helder era considerado um brilhante reformador social e,
quem sabe, um futuro santo. A Cruzada também começou a formar
líderes entre os próprios favelados.
Com o trabalho de Dom
Helder, as favelas passaram a ser vistas na cidade como uma
chaga viva da sociedade. No desenrolar dos trabalhos, Dom percebeu
que a Cruzada não resolveria o problema habitacional nas favelas,
mas que era preciso mudar a própria estrutura social. Afirmou que,
mesmo assim, faria tudo de novo, apesar de sua evolução espiritual
vivida no Vaticano II e em Medellín,
pois, se a solução definitiva não era esta, ficar parado também
não era. Talvez direcionasse mais sua obra para transformar as
estruturas. O que mudaria, aceitando a observação que o Papa
João XXIII lhe fizera, era o nome anacrônico de
“Cruzada”, porque o termo dá uma ideia de guerra, e ele queria
ser um apóstolo da paz.
Outras experiências similares à
Cruzada foram a do Banco da Providência, o qual,
além de ajudar a promover a caridade e a justiça, tornou-se um
celeiro de voluntariado, e a Feira da Providência,
que arrecadava verbas para ajudar na formação profissional em
mecânica, agricultura, artesanato, cozinha, etc. Um dos principais
centros de formação foi a Comunidade Emaús, concebida em 1959,
durante uma visita do Abade Pierre ao Brasil. A ação
de Dom Helder nas favelas o colocou em uma estrada
que nunca mais abandonou: a via do empenho para conseguir a justiça
social no seu país, na América Latina e no Terceiro Mundo. No
Vaticano II, Dom Helder será
conhecido como o Bispo das favelas!
IHU On-Line - Qual foi a
contribuição de D. Helder durante o Concílio Vaticano II?
Ivanir Rampon - O
Concílio Vaticano II transformou-se em uma
experiência espiritual decisiva na vida de Dom Helder Camara: meses
de intensa atividade, grandes sonhos, novos encontros e amizades que
o projetaram na esfera internacional. Com Dom Larraín,
conseguiu mudar as estratégias iniciais do Secretariado do
Concílio, garantindo uma melhor experiência de
colegialidade episcopal. No final do primeiro período conciliar, ele
já era apontado como uma das dez mais importantes lideranças da
Assembleia, mesmo sem ocupar nenhum posto nos vários organismos
oficiais de direção do Concílio. Sua ação se dava nas atividades
de articulação da CNBB e do CELAM,
em grupos informais como o “Ecumênico”, “Igreja dos Pobres”
e “Opus Angeli”. Era pródigo em receber a imprensa, sendo
requisitado por jornalistas. Descobriu que seu objetivo deveria ser o
de ajudar a manter o Concílio na linha inspirada por Deus ao Papa
João XXIII.
Fiel a essa meta, ele defendeu:
1) a
sacramentalidade e a colegialidade episcopal;
2) a liturgia
renovada e vivificada;
3) o diálogo
ecumênico;
4) o diálogo entre
o mundo subdesenvolvido e o desenvolvido;
5) um novo modelo
de Igreja alicerçado na pobreza e no serviço;
6) a figura do
Bispo-pastor;
7) a importância
de dar atenção aos “sinais dos tempos” como fez a Gaudium
et Spes.
Acrescenta-se que, nos momentos mais
duros e angustiosos do Concílio, com seu bom-humor, sua mística,
seu sorriso e sua total confiança no Espírito Santo, “quebrava o
gelo”, a fim de que fugissem o desânimo e a tristeza e se
reacendessem a fé, a esperança e a caridade, animando a fé dos
Padres Conciliares. Com prece e ação, ajudava o amigo Paulo
VI neste momento ímpar da sucessão petrina. Relatou a
sua experiência conciliar nas Circulares enviadas à Família
(espiritual). Foi um dos signatários do Pacto
das Catacumbas. Queria superar a era constantiniana, levando a
Igreja aos “perdidos caminhos da pobreza”. O Concílio, na
concepção helderiana, não foi apenas um evento, mas um espírito,
um programa de vida, uma concepção eclesial. O Vaticano II
lhe deu fundamentos para propagar um cristianismo aberto, libertador,
promotor da justiça e da paz. Disse-lhe muitíssimo por suas
palavras e silêncios, por seus textos e por seus gestos simbólicos.
IHU On-Line - D. Helder é
um dos nomes da Igreja mais lembrados por conta de sua
atuação durante a ditadura militar. Qual a importância de
sua atuação durante esse período?
Ivanir Rampon - O
pastoreio de Dom Helder Camara como Arcebispo de
Olinda e Recife (1964-1985) coincidiu com o período da repressão
militar e da lenta abertura democrática. Ao chegar a Olinda e
Recife, Dom Helder proferiu o “Discurso da
Chegada”, deixando evidente que, em nome do Evangelho de
Jesus Cristo, fazia uma profunda opção pelos pobres e estava
disposto a dialogar com todos. E assim fez: buscou diálogo também
com o regime militar, mas este foi fechando todas as portas e
janelas, pois não suportava a verdade evangélica defendida pelo
Arcebispo. É que os responsáveis pela ditadura militar o desejavam
como legitimador religioso do sistema de opressão e repressão.
A irritação transformou-se em ódio
quando, em maio de 1970, o Arcebispo rasgou a cortina do cinismo e da
mentira na frente de 20 mil pessoas em Paris, proferindo o famoso
discurso “Quaisquer que sejam as consequências” – denúncia de
que havia torturas no Brasil! A partir de então, Dom Helder
passou a ser visto como o maior adversário político pelo governo
autoritário. Porém, quanto mais odiado pelo sistema repressivo,
mais era amado como uma das grandes, senão a maior figura, que se
contrapunha à ditadura. O regime autoritário não o torturará
fisicamente, mas o golpeará atingindo lideranças próximas e amigos
que eram presos, torturados e assassinados. Dom Helder
foi vítima também de uma grande campanha de execração nos meios
de comunicação social e, posteriormente, a imprensa nacional foi
proibida de pronunciar o seu nome.
Enquanto ele não existia no Brasil,
era convidado, no exterior, para encontros, conferências,
celebrações e outros eventos, a fim de que anunciasse a mensagem
evangélica da paz. Houve um grande crescimento da fama de sua
santidade e o auge de sua notoriedade internacional, quando foi
indicado, quatro vezes consecutivas, ao Nobel da Paz e agraciado com
dezenas de doutorados honoris causa. Neste período, Dom
padeceu fortemente o sacrifício da cruz que celebrava em cada Santa
Missa, sofrendo, solidário, com os presos, torturados, silenciados,
martirizados.
IHU On-Line - Deseja
acrescentar algo?
Ivanir Rampon - As
ideias de Dom Helder, que não são dele apenas, mas
nossas – como o Dom gostava de dizer – precisam ser espalhadas a
fim de que haja não mais um primeiro, um segundo, um terceiro mundo,
mas sim um mundo, “um mundo de irmãos!”. Foi com o intuito de
colaborar neste sonho que foi publicado o livro O caminho
espiritual de Dom Helder Camara, destinado
às lideranças do povo de Deus, a quem busca uma graciosa fonte de
espiritualidade cristã e a quem quer fazer parte da abençoada
“Família” do Bispinho.
Parafraseando o Papa
Francisco – com o qual Dom Helder estaria/está
vibrando – podemos dizer que o Dom, de fato,
colocou “em jogo a pele e o próprio coração”, sendo um pastor
com “cheiro das ovelhas”, levando a unção pela qual foi
consagrado a todos, especialmente nas “periferias”, onde o nosso
povo fiel o aguardava e o apreciava. Através de suas palavras,
escritos, obras e prece, Dom Helder continua a nos
oferecer o óleo da alegria que Jesus veio trazer (Lc 4,14ss).
(Por Patricia Fachin
FONTE:
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/523294-dom-helder-camara-a-sintese-da-melhor-tradicao-espiritual-da-america-latina-entrevista-especial-com-ivanir-rampon