COMO
OS MÉDICOS MORREM
(Ana Lucia Coradazzi, médica oncologista clínica)
Você vai ler agora o comentário acerca de um artigo emocionante, escrito pelo médico Ken Murray, da University of
Southern California. No texto ele conta a história de um amigo,
ortopedista, que alguns anos antes recebeu o diagnóstico de um
câncer de pâncreas. Apesar de estar nas mãos de um grande
cirurgião, especializado nesse tipo de câncer e extremamente
capacitado para conduzir o caso, o ortopedista recusou o tratamento.
Foi para sua casa, procurou ficar o máximo de tempo possível com
sua família e otimizar sua qualidade de vida através do controle
dos sintomas da doença. Alguns meses depois, ele faleceu em casa.
Não recebeu quimioterapia, radioterapia ou tratamentos cirúrgicos.
Nada.
O fato é que, por incrível
que pareça e por mais incômodo que seja, médicos também morrem. E
não gostam da ideia de morrer, tanto quanto qualquer outra pessoa. O
que é diferente entre os médicos não é a quantos tratamentos eles
têm acesso em comparação com os outros pacientes, e sim a quão
menos tratamentos eles próprios se submetem. Médicos tendem a ser
mais serenos e realistas quando encaram a possibilidade de morrer.
Eles sabem exatamente o que vai acontecer, conhecem suas opções, e
geralmente têm acesso a todos os tratamentos disponíveis. Mas
partem suavemente, de forma quase que submissa.
É claro que médicos não
desejam morrer. Eles querem viver. Mas eles sabem o suficiente sobre
a medicina moderna para conhecer seus limites, e compreendem de forma
profunda o que as pessoas mais temem: morrer em grande sofrimento e
sozinhas. Médicos costumam falar sobre isso com seus familiares.
Deixam claro que, quando for sua hora, não querem ninguém quebrando
suas costelas na tentativa improvável de ressuscitá-los.
Muitas vezes, falam sobre
isso poucas horas após eles próprios terem feito exatamente isso
com seus pacientes (eu mesma já fiz). A maioria dos médicos já viu
(e praticou) demais o que chamam de “futilidade médica”, que
acontece quando é usado todo o arsenal mais moderno disponível para
uma pessoa gravemente doente, que está claramente no final de sua
vida. Eles já viram pessoas sendo cortadas, perfuradas com tubos e
agulhas, colocadas em máquinas barulhentas (e sedadas para suportar
a tortura), além da infinidade de remédios correndo em suas veias.
E morrendo poucos dias (até horas) depois. Eu já ouvi de colegas
angustiados frases como: “Prometa-me que, se um dia eu estiver
nessa situação, você vai me deixar partir. Não deixe que façam
isso comigo.” E é assim mesmo.
Mas, então, por que é que
eles fazem isso aos seus pacientes? Por que fazem com os outros o que
abominam para si mesmos? O grande problema aqui é também a origem
de praticamente todos os problemas do mundo: a má comunicação. Uma
família que vê uma pessoa querida em grande sofrimento
frequentemente faz pedidos do tipo “Doutor, faça tudo o que
puder por ele”. O médico, por sua vez, escuta “Por favor,
use todas as estratégias que você conhecer nesse caso”. E o
pesadelo começa. Na verdade, a tradução do pedido angustiado da
família possivelmente era “Doutor, faça o que puder para
aliviar o sofrimento dele. Ele não merece viver dessa maneira.”
A abordagem, provavelmente, seria bem outra. A mesma confusão pode
acontecer quando o médico pergunta ao seu paciente se ele deseja
continuar com o tratamento. O paciente pode entender que, se disser
“não”, será abandonado pelo médico e morrerá
exatamente do jeito que o apavora: sofrendo e sozinho. O mesmo
paciente poderia responder com um grande e aliviado “sim” se
ouvisse uma proposta do tipo “A sua doença não está respondendo
aos tratamentos que temos tentado, e eles estão deixando você ainda
mais debilitado do que o próprio câncer. O que você acha de
pararmos de nos preocupar com sua doença e focar nossos esforços
para melhorar ao máximo a sua convivência com ela?”.
Alguns médicos tatuaram no peito esta frase: Não me entube / Não me reanime |
O fato é que todos nós,
pacientes, médicos e familiares, sofremos as pressões do sofrimento
extremo, do tempo, do sistema de saúde, da própria formação
médica e das crenças culturais na hora de tomar uma decisão
drástica. Mas somente os médicos sabem o que acontece depois. Eles
tendem a não aceitar tratamentos excessivos e com poucas chances de
sucesso. Muitos buscam formas de morrer em suas próprias casas,
esmerando-se no controle da dor e outros sintomas, buscando
significado para suas próprias vidas e oferecendo o melhor de si às
pessoas a quem amam. A própria literatura médica oferece base para
esse tipo de decisão. Estudos têm demonstrado que pessoas com
câncer hospedadas em hospícios ou acompanhadas por serviços de
Cuidados Paliativos vivem mais (e melhor) do que aquelas com o mesmo
diagnóstico que recebem tratamentos oncológicos até o final da
vida.
Cabe a nós, médicos,
oferecer aos pacientes a informação que nos é disponível. Cabe a
nós permitir que eles compreendam que a morte não é algo a ser
evitado a todo custo, e sim um momento da vida, como qualquer outro.
Em muitas situações, ela simplesmente não pode ser evitada, apenas
adiada, e o custo disso pode ser um sofrimento intenso e
desnecessário. O “prolongamento da vida” pode, na verdade, ser
apenas o prolongamento do processo de morrer. Muitas vezes, com o
paciente em grande sofrimento e sozinho. Um motivo e tanto para que
os médicos não queiram passar por isso.
FONTE:
https://nofinaldocorredor.com/2015/04/25/como-os-medicos-morrem/comment-page-3/#comment-916
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